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Crédito: Carlos Alberto Pereira/Imprensa MG
- Existe alguma referência, estadual, nacional ou internacional para se pensar políticas públicas para a cultura?
As referências internacionais podem ser encontradas nos documentos da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Desde a década de 1980, a Unesco propôs ampliar o conceito de cultura, que passou a abranger todos os modos de viver, fazer e criar dos diversos grupos humanos, incluindo seus valores e crenças. Até então, as políticas culturais limitavam-se ao fomento de atividades artísticas e à proteção do patrimônio cultural de caráter material, principalmente as obras que faziam referência às histórias nacionais, regionais ou locais.
NoBrasil, a Constituição de 1988 acolheu o conceito amplo de cultura, expresso nos artigos 215 e 216, onde se lê que constituem patrimônio cultural brasileiro todos os bens de natureza material e imaterial, portadores de referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, seus modos de criar, fazer e viver. Com essa ampliação do conceito, a questão da diversidade cultural passou a ocupar lugar central nas políticas culturais.
Na gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura, cunhou-se o conceito da tridimensionalidade da cultura, que abrange as dimensões simbólica, cidadã e econômica. Embora tenham sido tratadas de forma equânime, considero a dimensão cidadã como a mais importante para a formulação de políticas culturais. Isso porque a dimensão simbólica da cultura existe independentemente do Estado; nasceu antes dele. Ela existe e evolui desde que o ser humano se entende como tal. Basta citar o exemplo da linguagem, que se expressa por meio de símbolos sonoros e verbais, mas também pela escrita. A dimensão econômica se realiza em grande parte no mercado, mas a dimensão cidadã, que se refere ao exercício dos direitos culturais, a chamada cidadania cultural, para se realizar necessita da ação do Estado. É certo que a conquista de direitos se dá nas lutas sociais e políticas, nas ruas e barricadas, mas a garantia do exercício de direitos só se concretiza com a presença ativa do Estado: do poder executivo, por meio do planejamento e execução de políticas públicas; do poder legislativo, pela criação de normas que dão estabilidade às políticas públicas; e do poder judiciário (aí incluído o Ministério Público) que interpreta e aplica as leis. No Brasil, o papel do poder público nessa esfera está explícito nas palavras que abrem a seção da cultura na Constituição “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais...”
2. Havia no governo Lula e com o Gil no Ministério da Cultura um potencial e uma expectativa muito grande em termos de políticas públicas para a cultura. No entanto, ainda nos vemos amarrados a uma lógica mercadológica com as leis de incentivo. O que houve no cenário político que as políticas públicas não se concretizaram como o planejado, salvo alguns programas de sucesso como o Cultura Viva?
É bom lembrar que o projeto de revisão da lei federal de incentivo da cultura, conhecido como Procultura, está em tramitação no Congresso Nacional desde 2009. Em síntese, o que se pretende com a nova lei é dar destaque ao Fundo Nacional de Cultura, sem eliminar o mecanismo do incentivo fiscal, que vigora no país desde 1985. Penso que um dos motivos que dificultam a aprovação do projeto seja a resistência de forças econômicas, mas também culturais, que formaram uma poderosa rede de interesses que se sentem ameaçadas pela nova legislação. Basta consultar a lista dos principais patrocinadores, captadores de recursos e também de proponentes de projetos culturais para identificar a existência dessa rede.
Contudo, mesmo nessa situação o Ministério da Cultura tem lançado, com recursos orçamentários e de fundos públicos, programas que ampliam o direito à cultura. Além do Programa Cultura Viva, pode-se citar o PAC das Cidades Históricas, o Programa do Patrimônio Imaterial, o Mais Cultura nas Escolas, o Brasil de Todas as Telas, a construção dos Centros de Artes e Esportes Unificados (Céus das Artes), o Pronatec da Cultura, além de uma série extensa de editais públicos para o fomento de segmentos específicos das artes (teatro, dança, circo, música, literatura) e das culturas (populares, indígenas, ciganas e afro-brasileiras, entre outras).
3. Como é possível pensar o financiamento da cultura sem as leis de incentivo como a principal ferramenta? Quais são as possibilidades frente à diminuição do orçamento que o próprio MinC tem sofrido?
Penso que as restrições orçamentárias, no plano federal e também nos estados, são conjunturais e serão superadas. As previsões são de que a economia brasileira, feitos os ajustes, voltará a crescer a partir de 2017, ou até mesmo antes. Até lá teremos de conviver num ambiente de relativa escassez.
A solução para o problema do financiamento tem sido apontada por todas as conferências de cultura: equilíbrio entre os valores dos incentivos fiscais e dos fundos públicos. Penso que já é hora de estabelecer um mecanismo de transferência de recursos incentivados para os fundos públicos, no modelo que hoje está sendo implantado com sucesso no Rio Grande do Sul. As empresas que se beneficiam dos incentivos fiscais, que em primeira e última instância são recursos públicos, devem dar contrapartida - no Rio Grande do Sul é de 25% do valor do projeto – que é depositada na conta dos fundos de cultura. Dessa forma, os fundos funcionariam como mecanismos de compensação das desigualdades que resultam da renúncia fiscal, especialmente as desigualdades regionais, já amplamente constatadas.
4. De que forma o Sistema Nacional de Cultura contribui para a implementação de uma nova política pública para a cultura que financie a produção cultural e artística?
Na modelagem do Sistema Nacional de Cultura - SNC, a principal ferramenta de incentivo são os fundos de cultura (nacional, estaduais e municipais). As dificuldades de consolidação do SNC situam-se justamente aí, no modelo de financiamento vigente, que privilegia o incentivo fiscal. Como exemplo, em Minas Gerais a renúncia de ICMS para financiamento da cultura chega, em média, a 80 milhões de reais por ano. Para o Fundo Estadual de Cultura encontramos 472 mil reais no orçamento de 2015. A concentração de recursos do incentivo fiscal na Região Metropolitana de Belo Horizonte chega a quase 70%. Já foi maior do que isso, mas a correlação ainda é muito desequilibrada e essa situação não é diferente da que ocorre no plano nacional, onde a região sudeste (principalmente São Paulo e Rio de Janeiro) concentra a grande maioria dos recursos.
Um capítulo da lei do Procultura, que trata do financiamento do Sistema Nacional de Cultura, estabelece que no mínimo 30% do Fundo Nacional de Cultura deverá ser transferido a fundos estaduais e municipais, desde que esses entes federados possuam os principais componentes do SNC: conselho de política cultural, fundo de cultura e plano de cultura. A aprovação da lei pode ser o início de um processo de mudança do modelo de financiamento que vigora na União e em vários estados e municípios. É verdade que 30% de pouco é menos ainda, mas já é um começo.
5. Em linhas gerais, quais são os benefícios para os estados que implementarem o SNC? E quais os principais desafios do Sistema Nacional, visto que apenas seis estados estão com seus Sistemas de Cultura instituídos por leis próprias?
O processo de adesão ao Sistema Nacional de Cultura tem crescido constantemente. Todos os Estados, o Distrito Federal e quase 2000 municípios já assinaram o Acordo de Cooperação Federativa com a União. A adesão, é óbvio, não significa implantação, que pressupõe, além da lei específica, a estruturação de todos os componentes (órgão gestor da cultura, conselho, plano, fundo, conferência, sistema de informação e indicadores, programa de formação e comissões de gestores, para pactuar e dividir atribuições). A consolidação de fato só ocorrerá com a implantação do mecanismo de transferência de recursos fundo a fundo (do fundo nacional para o dos estados e desses para os municípios), mas já é possível detectar avanços na estruturação dos componentes do SNC em vários estados e municípios, muitas vezes independentemente da existência de leis próprias.
6. Tornar o Fundo de Cultura (seja estadual ou nacional) como uma ferramenta em primeiro plano ao invés das leis é uma solução para o setor?
Creio que sim, principalmente para uma distribuição mais justa dos recursos públicos da cultura, buscando combater as desigualdades regionais, sociais, econômicas e culturais que são agravadas pelo mecanismo da renúncia fiscal. Todos os setores da cultura estão cansados de saber que os recursos se concentram onde há maior numero de contribuintes, ou seja, onde o desenvolvimento econômico é maior. O incentivo fiscal atua na contramão do equilíbrio regional.
7. Para Minas Gerais, como a Secretaria tem planejado fortalecer o papel do Estado no financiamento da cultura?
Para 2015, já conseguimos ampliar os recursos do Fundo de Estadual de Cultura em até 15 vezes, por meio de suplementação orçamentária. E estamos iniciando a discussão para alterar a leis estaduais de fomento (de incentivo fiscal e do fundo estadual). Já fizemos uma primeira discussão com o Conselho Estadual de Política Cultural, que se reuniu nos últimos dias 19 e 20 de maio. Queremos que o debate sobre o tema seja amplo, porque acho necessária uma mudança de mentalidade a respeito do papel do setor público na cultura. No início dos anos 80, quando nós optamos (digo nós, gestores públicos e segmentos culturais) pelo mecanismo do incentivo fiscal havia um consenso em torno da idéia de que o “Estado não faz cultura”. Penso que essa idéia tem de ser revista. O Estado faz cultura quando cria corpos artísticos estáveis (orquestras, corpos de baile e outros), quando protege, restaura e promove o patrimônio cultural (sem dúvida o tombamento é um dos mais poderosos instrumentos de intervenção estatal), quando instala museus públicos, quando implanta escolas de artes nas escolas públicas, quando capacita gestores públicos, entre muitas outras ações. Não se pode confundir política cultural de Estados totalitários (todas de triste memória) com políticas culturais de Estados democráticos. Acho que os segmentos culturais já estão maduros para compreender e reivindicar a concretização do que reza nossa Constituição: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais...”.
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