![](/images/stories/migracao/cultura/2015/FCS/a%20maquina%20de%20fazer%20espanhois%20%20Paulo%20Lacerda%20-%20FCS%202%20mini.jpg)
Com direção do ator e membro fundador da Cia Luna Lunera, Cláudio Dias, os 11 alunos formandos do curso profissionalizante de Teatro do Cefart, nova designação do Centro de Formação Artística, que ganhou a palavra Tecnológica, da Fundação Clóvis Salgado –, encenam a máquina de fazer espanhóis. A montagem é uma livre adaptação do livro homônimo do escritor angolano Valter Hugo Mãe que vive em Portugal desde sua infância. O espetáculo narra a história de António Jorge da Silva, um barbeiro de 84 anos que, após perder a esposa, passa a viver em um asilo e compartilhar com seus novos companheiros suas memórias e reflexões sobre a vida.
Ambientada em Portugal dos dias atuais, a trama se desenvolve na casa de repouso Feliz Idade. O enredo apresenta personagens que têm de lidar com o afastamento de seus entes amados, com as recordações do passado,a eminência da mortee com os reflexos econômicos e culturais da integração do país à União Europeia. Neste cenário, os moradores do asilo nutrem o profundo desejo por outra nacionalidade: a espanhola, já que consideram a nação vizinha mais alegre, mais viva e com melhores salários. Por esse motivo, Portugal é uma “máquina” de fazer espanhóis.
Nesse clima melancólico e saudosista, o resgate da memória das personagens é um conflito constante entre a difícil tarefa de se manter ativo e bem, mesmo aguardando a inevitável visita da morte. As lembranças que moldaram cada um dos residentes afloram neste espaço. Entre amores que partiram e chances perdidas, o peso dos 50 anos da ditadura de António de Oliveira Salazar recai sobre os ombros do protagonista da peça, que aceitou, de maneira passiva, aquele período conturbado na história do país.
Experimentações artísticas – O contato da turma com Cláudio Dias começou no segundo semestre de 2014, quando o ator ministrou a disciplina de Interpretação. A proposta das aulas era trabalhar, de forma mais intensa, diferentes atividades de improvisação, tanto para a preparação do ator quanto para a criação de personagens e cenas. “Após essas atividades, surgiu o interesse da turma em dar continuidade à pesquisa, me convidando para dirigir o espetáculo de conclusão doprimeiro semestre”, conta Cláudio.
Um dos pilares do curso profissionalizante em teatro é a construção coletiva das montagens. Durante esse período, os alunos são estimulados a participar de todas as etapas do processo de criação dos espetáculos. Para o diretor de Ensino e Extensão do Cefart, Roger Vieira, promover a autonomia do estudante e instigar a capacidade criativa dos alunos permite que as turmas discutam, ao lado de seus professores, os mais diversos conteúdos artísticos. “Esse diálogo mais horizontal, com o corpo docente, artistas e outros estudantes do Cefart, permite uma troca muito mais efetiva para a formação dos alunos”, ressalta.
A escolha do texto de Valter Hugo Mãe surgiu durante a atividade “ensaios afetivos”, uma forma de encarar as narrativas a partir de um olhar mais voltado para o afeto. A turma foi, então, convidada a responder o que desejava para a montagem. “Chegamos, assim, ao livro a máquina de fazer espanhóis, encontrando ali um texto tão bonito e forte, consonante com o que queríamos falar. Partimos então para a criação das personagens, que, na maioria, estão na terceira idade”, aponta Cláudio.
Laboratório para composição das personagens – No livro de Valter Hugo Mãe, boa parte das personagens tem mais de sessenta anos e divaga sobre histórias do passado. A média de idade da turma dirigida por Cláudio é pouco superior a 30. Para o diretor, esse tem sido um desafio durante a dramatização do elenco. “Temos trabalhado uma sensibilidade maior da turma para captar a essência de pessoas idosas. É uma difícil tarefa fazê-los se enxergarem no lugar do outro, mesmo que as experiências de vida sejam mais breves”.
Para investigar esse universo, os alunos atores visitaram asilos e casas de repouso em Belo Horizonte, para colher depoimentos e entender melhor a situação daqueles que vivem nesse ambiente. Aos 31 anos, o aluno Éder Reis interpreta dois papéis na montagem, João Esteves e Anísio Franco. Segundo Éder, as pesquisas colaboram para a criação de personagens menos caricatas e mais realistas. “Essas visitas contribuíram para entender a relação que os idosos têm com o passado e com a própria solidão. Com essa bagagem, a caracterização ganha um peso diferente, já que o enredo da peça aborda esses temas”, detalha Éder.
Encontros literários e didáticos – A obra a máquina de fazer espanhóis traz um resgate que o próprio Valter Hugo Mãe fez de um dos personagens mais marcantes do poeta português Fernando Pessoa: Esteves sem Metafísica, do poema “A Tabacaria”. Assim como no livro, Esteves é um dos residentes do Feliz Idade e, prestes a completar 100 anos, discute o sentido da vida com os outros idosos, a designação da realidade e a existência de Deus, como explica o diretor da montagem, que também ressalta que a visão de Esteves sobre esses assuntos tem um caráter mais simples e bem humorado, contrastando com a densidade de algumas personagens da história.
Fora da ficção, a montagem de a máquina de fazer espanhóis marca um novo encontro de Cláudio Dias com o Cefart. O ator se formou no curso profissionalizante em 2000, e, desde então, fundou, com alguns colegas de turma, a Cia Luna Lunera e assinou a direção de montagens de sucesso na capital e em outras cidades. Ao voltar à escola, Cláudio destaca que “o retorno é muito gratificante e ao mesmo tempo de uma responsabilidade enorme. Estive aqui há 15 anos como aluno e sei a vontade e expectativa dos alunos com relação ao espetáculo. Meu trabalho é oferecer minha experiência acumulada nestes 20 anos de profissão contribuindo para a melhor formação desses atores”.
Cenário e figurino – Criação de Cláudio Dias e da professora de caracterização cênica Thálita Motta, o cenário e o figurino da peça dialogam diretamente com a essência dramática da criação de Valter Hugo Mãe. O cenário, por exemplo, é predominantemente branco, com estruturas que se movimentam e refletem a dinâmica do asilo Feliz Idade. Já o figurino foi elaborado para dar a ideia de permanência das personagens na casa. No desenvolver da peça, os atores trocam as vestimentas para roupas com tom mais claros. “Esse figurino é um recorte temporal. As peças são feitas em linho e vão ficando mais claras à medida que a história se desenrola para mostrar que, com o passar do tempo, as personagens ficam cada vez mais presas ao asilo, se confundindo com o lugar”, diz Thálita.
Inspirações musicais de Portugal e Espanha – Criação do estudante Gabriel Cesário, do curso de música do Cefart, a trilha sonora de a máquina de fazer espanhóis reúne, de forma sutil, alguns elementos característicos das canções típicas de Portugal e Espanha, por exemplo, a guitarra portuguesa e as castanholas. Segundo Gabriel, que pela primeira vez compõe para uma montagem teatral, o trabalho de criação musical consistiu em absorver o máximo de intenções dramatúrgicas dadas pelo diretor, o que possibilitou que ele montasse a estrutura musical necessária para cada cena de forma mais eficaz. A trilha sonora ainda conta com canções da cantora portuguesa Amália Rodrigues, do grupo de fado Madredeus e de Caetano Veloso.
Cláudio Dias – Com 20 anos de teatro, Cláudio Dias é ator, diretor e membro-fundador da Cia. de teatro Luna Lunera. Iniciou sua carreira no Grupo Intervalo, dirigido Ítalo Mudado. Em 2000, formou-se no antigo Cefar, com os espetáculos “Fuleirices em Fuleiró” e “Perdoa-me por me traíres” (2000). Já na Luna Lunera, integrou o elenco dos espetáculos “Nesta Data Querida” (2003), “Não Desperdice Sua Única Vida, Ou” (2005) e “Cortiços” (2008); em “Aqueles Dois” (2007) e “Prazer” (2012) atuou como ator e codiretor. Desde 2006, pesquisa a preparação do ator, tendo a dança contemporânea, o contato improvisação e o viewpoints (pontos de vista) como base. Dirigiu o espetáculo “Nosso Estranho Amor” - contemplado com o prêmio Funarte Myriam Muniz 2009 e indicado ao prêmio Sesc/Sated 2010 de melhor direção. Em 2014, dirigiu o espetáculo "Ao Meu Redor".
Valter Hugo Mãe – O escritor angolano nasceu em 1971 e vive em Portugal desde sua infância. É pós-graduado em literatura portuguesa moderna e contemporânea, na faculdade de letras do Porto. Foi contemplado com o importante prêmio literário José Saramago, em 2007, além de ser conhecido como um dos autores mais prestigiados da sua geração. É conhecido como o “autor das minúsculas”. Ele chama a atenção para os seus primeiros romances publicados, dentre eles, “a máquina de fazer espanhóis”; uma das tetralogias escritas com letras minúsculas. O intuito do escritor é oferecer ao leitor a escolha da importância por meio da liberdade do pensamento e natureza oral dos textos.
Sobre o Cefart - O Centro de Formação Artística e Tecnológica da Fundação Clóvis Salgado (Cefart) integra a política do Governo de Minas de fomento à formação em arte, nas áreas de teatro, dança e música. Oferece cursos livres, técnicos profissionalizantes e de extensão destinados à capacitação, qualificação, aperfeiçoamento e atualização de crianças, jovens e adultos. Com o objetivo de formar profissionais cada vez mais diversificados, o Cefart propõe a realização de cursos em tecnologia do espetáculo, com disciplinas voltadas para iluminação, sonorização, figurino e cenografia.