Primeiro longa do cineasta foi a obra a mais censurada no país e chega à TV aberta, pela Rede Minas, nesta sexta-feira (7/5)
Ousadia e liberdade definem o cineasta mineiro Neville D’Almeida, que completa 80 anos neste mês de maio de 2021. Para celebrar a data e homenagear sua inegável contribuição ao cinema brasileiro, a Faixa de Cinema, da Rede Minas, exibe nesta sexta (7), às 23h, “Jardim de Guerra” (1968), seu primeiro longa-metragem. Quando Neville Duarte de Almeida, filho de Afonso Almeida e Laura Alves Duarte, nasceu na cidade de Belo Horizonte, em 15 de maio de 1941, o mundo atravessava a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). À época, o cinema não deixava de crescer no campo das artes. Ao longo da década de 1940, enquanto Neville passava da infância à adolescência, a indústria cinematográfica norte-americana investia em filmes de apelo patriota e comédias musicais. Na Itália, o neorrealismo despontava como movimento cinematográfico e, no Brasil, as chanchadas ganhavam destaques como gênero de filme tipicamente nacional.
Em uma conversa com a equipe da Faixa de Cinema, da Rede Minas, Neville lembrou a carreira e a produção da obra. Ele conta que, ainda criança, em uma viagem com os pais para visitar os tios em Barra Mansa, estado do Rio de Janeiro, pararam em uma bombonière. Ao fundo do saguão, havia uma cortina. Ele perguntou: “papai, o que é aquilo?” e o pai respondeu: “aquilo é cinema”. Neville perguntou novamente: “o que é cinema?”. “Vai lá e olha”, disse o pai. Então, o menino puxou a cortina vermelha de veludo e se deparou com a imensidão da tela e a projeção do filme “Gilda” (1946), com Rita Hayworth e Glenn Ford. Naquele momento, disse pra si: “quando crescer quero fazer isso”. E assim foi. Essa passagem já foi citada por Neville em outras entrevistas, mas ouvir dele a palavra carinhosa “papai” e a descrição da cena com o magnetismo e a certeza do que queria fazer da vida, ainda pequeno, é algo notável. Para Neville, o cinema não é amor, é paixão.
Hoje, o cineasta, libertário, autoral, inconfundível, controverso, censurado e polêmico, orgulha-se de ter nascido em Belo Horizonte, Minas Gerais, e agradece a Deus por ter frequentado, no início de sua trajetória, o Centro de Estudo Cinematográficos (CEC), ter sido um dos fundadores do Centro Mineiro de Cinema Experimental (CEMICE) e ainda estudado no Teatro Universitário de Minas Gerais (TU), na época dirigido pela atriz Haydée Bittencourt. São lembranças de um tempo efervescente no Cine Clube, onde teve a oportunidade de ver filmes do mundo inteiro, o que lhe garantiu uma visão universal do cinema. Foi assim que se tornou um cinéfilo. Em meados de 1960, partiu para os Estados Unidos com o objetivo de estudar cinema no New York College. A experiência, contudo, não tão exitosa, o fez ver o curso como limitado ao cinema estadunidense e com pouca abrangência do cinema mundial. Mas ali sentiu os ventos das pautas progressistas que circulavam em voga nos Estados Unidos, como os movimentos black power e feminista. Nessa época, conheceu o escritor e músico Jorge Mautner, com quem mais tarde assinaria o argumento e o roteiro de seu primeiro longa-metragem, “Jardim de Guerra”.
Sobre o filme, Neville se orgulha em dizer que realizou uma obra profética. Segundo ele, conseguiu antecipar em 50 anos o movimento feminista e o movimento contra o preconceito racial no Brasil. Neville cita os atores e atrizes do filme, como Nelson Pereira dos Santos, Hugo Carvana, Glauce Rocha, Dina Sfat, Antônio Pitanga, Emanuel Cavalcanti, Joel Barcelos e Maria do Rosário Nascimento Silva, e declara que “Jardim de Guerra” é uma coleção sobre a cultura brasileira. A obra acabou sendo proibida, interditada pela censura, logo após a promulgação do Ato Institucional nº 5, de 1968, do regime militar. A obra rendeu o prêmio de “Melhor Ator” para Joel Barcellos, no Festival de Brasília (1968), e foi inaugurada na Quinzena dos Realizadores, do Festival de Cannes (1969). No Brasil, jamais foi lançada comercialmente.
Nada deteve o amante da sétima arte de cessar seu ofício. Depois de “Jardim de Guerra”, outros filmes de Neville também foram censurados, como “Mangue Bang” (1971), “Surucuru Catiripapo” (1971) e “Gatos da Noite” (1973). Para o diretor, o cinema sempre foi um exercício de liberdade. Na contramão do que ele considerava um cinema hipócrita, moralista, baseado em regras opressoras, acabou seguindo um caminho autoral, experimental, libertário. Nesta trajetória, foi muitas vezes criticado por uns e aclamado por outros. Sua vasta filmografia coleciona diversos prêmios e uma série de sucessos de bilheteria, como “A Dama do Lotação” (1975), “Rio Babilônia” (1982) e “Navalha na Carne” (1997). O traço comum em suas obras é a capacidade de refletir o seu tempo e a sua época com inventividade e crítica social. São várias as polêmicas em torno das obras do cineasta, mas que não retiram a sua genial contribuição para o acervo cultural do país.
A inventividade de Neville D’Almeida não se resume ao campo do cinema. Além de cineasta e roteirista, é escritor, ator, fotógrafo, artista plástico e performer. Com toda esta criatividade e vocação, o cidadão brasileiro das artes chega aos 80 anos com fôlego de quem está apenas começando. Sobre o momento atual e suas atividades, Neville diz que está se mantendo ocupado o tempo todo, como sempre fez a vida inteira. Como exemplo dos vários projetos, ele cita a minissérie experimental chamada “Ciúme e relação abusiva”, um filme sobre o meio ambiente “By By Amazônia”, projetos de artes plásticas, produção de três livros e oito roteiros para novos filmes. Revela ainda, com exclusividade, um projeto especial dedicado a sua querida Minas Gerais, ainda em produção. Para Neville D’Almeida, é motivo de muita emoção saber que “Jardim de Guerra”, filme tão censurado e cortado, será exibido na íntegra, na tela da Rede Minas, em Belo Horizonte, sua cidade natal.
Imagem: Dib Lufti