por DANIEL OLIVEIRA
Depois de ficar sabendo da Mostra de Tiradentes em 2014, Roger Koza passou a frequentá-la em 2016. Desde então, o crítico e programador de festivais como o Film Fest Hamburg e o Ficunam se tornou um dos maiores responsáveis por levar os filmes da mostra, como “Baronesa”, para o circuito internacional. No papo abaixo, ele explica por que acha Tiradentes o principal festival brasileiro e conta o que pensa a respeito do cinema nacional atual.
Por que você acha que Tiradentes é um festival tão importante para o cinema brasileiro? Porque acredito que, se não a única, é uma das poucas mostras de cinema – não só no Brasil, mas na América Latina – que trabalha muito conscientemente a relação entre os filmes que programa e o estado do cinema em geral, por meio do cinema brasileiro. E junto com isso, tem um claro conceito crítico na programação. Isso não é frequente. Para mim, os brasileiros são propensos a amar seu país em demasia e, em consequência, se perdem chauvinisticamente no que fazem – com um resultado que, por vezes, tem suas virtudes. Mas acredito que a forma de entender o cinema brasileiro deste festival não é chauvinista. Ele busca entender como os filmes do Brasil hoje expressam algo sobre o país – e, para além disso, como eles se relacionam com a história do cinema daqui e de fora. Cléber (Eduardo), curador da mostra, entende perfeitamente qual é o diálogo contemporâneo do cinema com o cinema, e do cinema com o mundo. Não acho que existam muitos festivais conscientes dessa discussão e, por isso, considero a Mostra de Tiradentes a mais importante do Brasil hoje.
Qual a maior qualidade e o maior defeito dos filmes que você vê aqui? Em geral, eles transmitem um misterioso laço com a realidade. E são filmes raivosos, que têm em seu motor secreto, seu espírito, raiva, incômodo. Acima de tudo, não são obras conformistas. Esse grande inconformismo é a impressão geral do que vejo em Tiradentes. E o que mais me chama a atenção é que, para fazer uma comparação, o cinema argentino raramente se importa com a contemporaneidade e o mundo em que vivemos. Todos os filmes em Tiradentes se importam muito com o mundo em que estão vivendo, no Brasil hoje. E se preocupam não só com o que narram, mas com a forma também. Porque são filmes. Se não, estaríamos falando de ilustrações audiovisuais sobre temáticas sociais. Isso não acontece aqui. Eles interrompem o conformismo, se colocando na contramão do discurso dos meios de comunicação. Os defeitos que vejo são uma certa propensão à alegoria. E uma relação sempre muito problemática com uma certa tradição do teatro brasileiro. De resto, em geral, me parecem filmes impecáveis.
O que você mais gosta ou menos gosta no cinema brasileiro como um todo? Creio que existam três ou quatro filmes recentes que são notáveis. “As Boas Maneiras”, que trabalha com várias tradições cinematográficas em uma substância popular, atravessadas pelo gênero do terror. O outro é “Arábia”. Ele é bem mais acessível que o filme anterior do Affonso Uchoa, “A Vizinhança do Tigre”, que me agrada mais, mas mesmo assim, o que ele e o (João) Dumans fazem é dotar um trabalhador de expressão, e da capacidade de redefinir sua identidade por meio da palavra, de forma muito corajosa. Um terceiro é “Era Uma Vez Brasília” do Adirley Queirós que, para mim, é o grande cineasta brasileiro da contemporaneidade. Ele volta a mostrar que a única forma de compreender o Brasil da atualidade é por meio da ficção científica – tendo em vista que a realidade brasileira transborda, em momentos, qualquer noção de racionalidade política. E a última importantíssima é “Baronesa”, de Juliana Antunes, que passou aqui no ano passado.
Você foi apontado, aliás, como um dos grandes responsáveis pelo sucesso e pela circulação internacional do “Baronesa”. Quando encontra um filme tão valioso assim, é responsabilidade de um crítico ou programador assegurar que ele tenha a maior visibilidade possível. E nesse caso, eu tentei. Já havia feito algo assim antes com “Branco Sai, Preto Fica”, que havia sido olimpicamente ignorado internacionalmente. E tive muito a ver com o fato de que o filme novo do Adirley estivesse em Locarno no ano passado. Porque me parece que são longas essenciais dentro do cinema brasileiro contemporâneo. Fiz o que tive que fazer porque esse é meu papel. Mas o festival foi inteligente ao me chamar, e chamar outros como Raúl Camargo, curador do Festival de Valdívia, Erick González… pessoas que têm uma leitura do cinema contemporâneo, podem reconhecer os achados da Mostra de Tiradentes e colocá-los em circulação. Meu trabalho é reconhecer quando vejo algo valioso. E por um “Baronesa” eu daria, não te digo a vida, mas uma boa parte dela.
Como curador, que tipo de filme e de cinema te interessa? Me sinto muito à vontade em Tiradentes porque o que encontro aqui é o que eu busco. Basicamente, são filmes pertinentes dentro do mundo em que vivemos e que, de algum modo, rompem as fronteiras da conveniência e do conservadorismo político e estético. E fazem isso sem deixar de serem filmes, pensando a forma e a linguagem cinematográfica – algo essencial na hora de selecionar qualquer trabalho. Se uma produção diz coisas muito importantes, mas é desastrosa ou não pensa na sua forma fílmica, eu aconselharia ao diretor abrir um partido político em vez de fazer cinema. O que me importa é a forma cinematográfica porque ela é uma forma de política. A Mostra de Tiradentes se caracteriza por reunir obras que pensam, ao mesmo tempo, sua realidade e o cinema. Como programador, é isso que busco.
E como você enxerga o estado da crítica hoje? O bom crítico, em princípio, deve compreender que o gosto cinematográfico que ele ou ela tem não é o fim do caminho, e sim seu ponto de partida. Isso implica entender a relação do filme com a história do cinema e outras produções contemporâneas – e analisar como essa obra dialoga com o tempo em que se vive. E, claro, há a questão de saber como escrever sobre cinema, encontrar um estilo de escrita, uma voz e um ponto de vista. Um crítico tem o dever de saber que não se trata apenas de um exercício de interpretação, mas de uma revisão física da constituição do filme – de reconstruir a forma cinematográfica na escrita. O problema do digital x impresso me parece um falso problema porque há bons textos em um e outro. Há a redução dos espaços nos jornais, certo, mas alguém pode dizer muitíssimo em 200 palavras, e não dizer nada em 3.500. No meu caso, que escrevo em jornal, busco usar esse espaço de forma coerente, adequada e esteticamente relevante.
O que chega do cinema brasileiro na Argentina e como ele é visto lá? O cinema brasileiro praticamente não estreia na Argentina, exceto alguns casos como “Aquarius”. Mas nunca mais que quatro por ano. A maioria, porém, chega em festivais. A distribuição dos filmes latino-americanos na própria América Latina é um grande problema – não é só do cinema brasileiro na Argentina, mas do argentino aqui e do chileno também. Não chegam, a não ser quando há um reconhecimento poderoso de algum festival estrangeiro como Cannes.
Como você se interessou por cinema e por que se tornou crítico? Me interessei porque meu pai me levava ao cinema desde os 3 anos. E ele criou um mito de que era crítico. Mas na verdade, nunca foi – era um “Tiradentes” (risos). Talvez um pouco para conjurar esse mito, eu o transformei em verdade.
Divulgação: Jornal O Tempo (goo.gl/QcwFsi)