No ano de 1733, uma festa triunfal eucarística, síntese da contrarreforma e do barroco foi realizada em Ouro Preto, à época Vila Rica. Essa celebração híbrida barroca marcou de maneira singular a história de Minas Gerais e das Américas. Narrada com detalhes pelo português Simão Ferreira Machado, na crônica “O Triunfo Eucarístico - Exemplar da Cristandade Lusitana”, a celebração contagiou toda a cidade com cores, sons e imagens. Neste sábado (22), aquele momento será rememorado em Ouro Preto, 290 anos depois.
O Triunfo Eucarístico foi realizado na ocasião do traslado do Santíssimo Sacramento da Igreja do Rosário até a Igreja do Pilar. A festividade fez jus ao nome e, como descreveu Machado, mostrou os "portugueses senhores dos mais finos diamantes de todo o mundo" em um momento, ao qual o cronista revela não ter tido lembrança "que visse o Brasil, nem consta, que se fizesse na América ato de maior grandeza".
Ele também ressaltou as sugestões místicas e profanas do cortejo numa grande apoteose cultural e artística das Minas Gerais. Relata os trajes enfeitados com pedras preciosas, alegorias, efeitos visuais e sonoros das danças e músicas, teatro, jogos públicos, toque dos sinos, uso constante de estampidos, rufares de tambor, apitos, clarins, trombetas, tiros de mosquetes, poesias junto ao Palácio do Bispado e cavalhadas.
Na convivência das disparidades surgia um caldeirão de sentidos, como refletiu Nicolau Sevcenko: “Aqui, o Barroco não foi um estilo passageiro, mas a substância básica de toda uma nova síntese cultural. Se há um traço que perpassa as diferentes manifestações da cultura brasileira é justamente este barroquismo latente com as vibrações e ressonâncias que lhe são típicas: extremos da Fé”.
O esplendor e a majestade que culminaram no Triunfo Eucarístico é um bom caracterizador da apoteose barroca, e mais se pensado como aglutinador da alegoria e do espírito das festas brasileiras. Esse acontecimento talvez também tenha seus ecos no Carnaval contemporâneo. O Triunfo Eucarístico foi a consequência de uma série de fatores, que condicionaram o aparecimento dessa cultura, a qual começou com a exploração aurífera do interior do país.
Apoteose da festa e da fantasia, a festividade é também abordada pelo escritor Affonso Ávila, cujas palavras descrevem de forma aclaradora o Triunfo Eucarístico: “A ornamentação e iluminação da vila revivem motivos tipicamente barrocos, com a montagem decorativa de cenários festivos, à maneira dos presentes na obra de Góngora ou Cervantes, enquanto as sucessivas noites de luminárias dão ao ambiente uma atmosfera de ‘ensueño’. Como se vê, a encenação impregnava-se de requinte, acrescido pela exuberância dos adornos de ouro, prata, diamantes, pedraria, sedas, plumas, tanto na indumentária dos figurantes, quanto nas suas montarias ou demais peças componentes do espetáculo. Após o desfile alegórico dos ventos, planetas, ninfas, pajens, etc. surgiria, culminante, a figura da nova igreja matriz, também ela guarnecida do mesmo aparato ornamental”.
Essa ostentação que reflete todo o poder econômico e social de Vila Rica demonstra ainda ser uma das primeiras incursões em favor da brasilidade junto ao movimento da Inconfidência Mineira. O historiador do barroco, Jonh Bury, afirma que o fato de enriquecer e embelezar as cidades eram uma expressão prática em favor do patriotismo brasileiro: “É lógico, assim, que as novas igrejas refletissem na sua inteligência versátil, sua educação acadêmica, seus gostos artísticos e a aspiração de emancipar o Brasil de Portugal”. Eis, pois, o grito de liberdade desvelado pelas festas brasileiras que se inauguram na grandeza do Triunfo Eucarístico de Ouro Preto que ora celebramos os seus 290 anos, sendo também um uma comemoração da singular Cultura do nosso estado, Minas Gerais.
*Texto escrito pelo Secretário de Estado de Cultura e Turismo de Minas Gerais, Leônidas Oliveira, e originalmente publicado no jornal O Tempo
Foto: Pedro Vilela