Quem pensa em cozinha mineira e visualiza (apenas) um fogão a lenha precisa voltar a Minas Gerais. Não que a tradicional forma mineirinha de preparar alimentos esteja em extinção. A novidade é que a ela se somam restaurantes de chefs revolucionários e até mesmo botecos gastronômicos que trazem sabores clássicos apresentados em formatos surpreendentes. São pratos preparados com técnicas e equipamentos de última geração e embalados em um conceito que não poderia ser mais moderno: o de voltar às origens com um olhar atual. Dessa aparente contradição entre inovação e tradição nasce a cozinha mineira contemporânea.
Para Leônidas Oliveira, secretário de Estado de Cultura e Turismo de Minas Gerais, esse movimento de volta às origens começou em Tiradentes, cidade histórica que sedia há 26 anos o primeiro e mais importante festival gastronômico do país, mas explodiu mesmo no pós-pandemia. "Os novos restaurantes que abrem já têm este entendimento da ‘mineiridade’. Uma grande característica dessa nova cozinha é o respeito ao território, ao que as comunidades fazem, com esse olhar para o original e apresentado de forma mais internacional, em um menu de vários passos, com nossos vinhos, azeites, cachaças, cervejas e cafés’’, diz.
"O objetivo da cozinha mineira contemporânea é valorizar aquele trabalho tradicional, respeitando muito o que foi feito até aqui, mas buscando um novo olhar que condiz com 2023, com a contemporaneidade e com o que é tendência na gastronomia", define Caio Soter, um dos chefs mais conectados ao movimento.
Ao abrir, em 2021, seu primeiro restaurante autoral, o Pacato, em Belo Horizonte, Soter decidiu não servir absolutamente nada que fosse de fora do estado, que não tivesse a ver com o costume alimentar do mineiro, ao menos em sua origem, que é a tríade porco-frango-vegetais. Ali, não entram camarão ou peixes de água salgada, por exemplo. Soter, ainda, vai além. Passa boa parte do ano pesquisando e viajando pelo estado para pesquisar não só produtores mas também a cultura, a música e o artesanato para incorporar ao Pacato e inspirar seus menus degustação, que de tradicionais não têm nada.
Não se trata de pegar o modelo francês e encaixar ingredientes mineiros. Soter subverte a forma de pensar a sequência de pratos, criando um menu de dez pratos que traduz um dia de comilança em Minas Gerais. "A gente começa pelo café da manhã e vai andando no correr do dia até chegar àquele momento que você, antes de dormir, vai à geladeira para pegar um pedacinho de queijo, um docinho." Uma forma modesta de resumir uma sequência de pratos que percorre releituras de clássicos como o frango com quiabo, apresentados de maneiras totalmente inovadoras. "Não podemos ficar amarrados ao tradicional. Se temos opção maior de técnicas, utensílios, de rastreabilidade de produto, de tudo, a gente deve aplicar isso, pois, dessa forma, nossa cozinha evolui."
Felipe Rameh, chefe-executivo do Tragaluz, é outro expoente da comida mineira contemporânea. Sua experiência em renomados restaurantes europeus e no D.O.M., de Alex Atala, realça sabores do que encontra no "quintal", a região de Tiradentes, onde fica o restaurante.
Autor do livro "Inventário Particular - Uma Coleção de Histórias, Sabores e Amores", Rameh mescla sua memória afetiva da culinária local com requintadas técnicas gastronômicas aprendidas ao longo da vida.
Segundo Leônidas Oliveira, a nova cozinha mineira ou contemporânea é uma denominação, mas a cozinha mineira esteve sempre em evolução, a cada geração. "Esses chefes da nova cozinha mineira pesquisam nos livros de receitas das famílias, toda família mineira tem um e guarda tesouros", diz.
A BH da Cozinha Contemporânea
Nessa nova cena de cozinha contemporânea em Belo Horizonte, que ostenta o título de Cidade Criativa da Unesco pela Gastronomia, cabem diferentes formatos e propostas. Da alta cozinha de Léo Paixão, que teve pela segunda vez o seu Glouton entre os 100 melhores do mundo na lista do 50Best Latin America, aos botecos cada vez mais inventivos. De restaurantes que só trabalham com menu degustação, como o Per Lui, do chef Yves Saliba, aos que só servem pão de queijo. Dos estabelecimentos em bairros tradicionais, como Lourdes, aos em novos polos gastronômicos, que ocupam edifícios ou mercados que antes estavam em decadência. Em comum, esses lugares tão diferentes têm o respeito às raízes. "A cozinha é um fator identitário de Minas", resume Leônidas Oliveira.
Entre as novidades estão o Cozinha Santo Antônio, inaugurado em 2020 pela chef e historiadora Juliana Duarte. A proposta é unir ingredientes orgânicos e histórias em pratos como o Maria da Cruz, batizado em homenagem à líder de um motim contra a Coroa Portuguesa à beira do Rio São Francisco, no norte de Minas. Leva ingredientes da região como um peito Angus Carapreta meia cura, milho e mandioca com requeijão moreno.
Outra boa nova é o Florestal, de Bruna Martins, aberto em 2022. A chef, que ficou famosa nacionalmente pelo reality Mestre do Sabor, já tinha desde 2013 o Birosca S2, um restaurante de comida afetiva mineira com receitas garimpadas nos livros de família. O conceito do novo restaurante é dar protagonismo aos vegetais cultivados por pequenos produtores rurais. Ela também é dona do Gira, um ecommerce e bar de vinhos orgânicos e artesanais, com carta repleta de vinhos mineiros.
O bar físico do Gira fica no Mercado Novo, um antigo mercadão degradado que foi revitalizado em 2018 e conta com lojas, bares, cachaçarias e restaurantes que representam bem essa cozinha contemporânea. Também ali, o Cozinha Tupis, do chef Henrique Gilberto, faz releituras muito interessantes de delícias mineiras. Outro local já clássico é a Copa Cozinha, uma loja de broas, bolos e biscoitos que recebe para um café da manhã aos fins de semana, bem ao estilo "casa de vó". Há uma filial no bairro Floresta que abre para almoço.
"Está acontecendo um fenômeno muito interessante em Belo Horizonte. Depois da revitalização do Mercado Novo, outros espaços do centro foram renovados e ocupados por bares e restaurantes dessa cozinha mineira contemporânea", conta Leônidas Oliveira. Os polos da vez são a Galeria São Vicente, o Edifício Maletta e, ainda mais recentemente, o entorno da Praça da Estação.
Botecos
Engana-se quem acha que essa onda de nova cozinha mineira exclui os famosos botecos, tão onipresentes na capital mineira. Segundo o secretário Leônidas, esses bares são centros de criatividade. "Temos o festival Comida di Buteco, que a cada ano é uma releitura, uma inventividade absurda, uma pesquisa muito grande dos pratos da nossa tradição, mas todos com misturas inusitadas", diz.
Esse novo jeito de pensar a cozinha mineira chegou até mesmo às coisas mais simples, como o tão mineirinho pão de queijo. Em 2013, foi inaugurada a Pão de Queijaria, com três lojas na capital. Ali, a receita caseira do mais mineiro dos quitutes é feita à risca e com queijos tradicionais, mas aceita subversões. Ele pode, por exemplo, ser recheado com hambúrguer.
Minas dos Festivais
A histórica Tiradentes, onde toda essa revolução começou, recebe anualmente mais de 60 mil visitantes para seus dez dias de festa gastronômica. Democrático, o Festival de Cultura e Gastronomia de Tiradentes promove desde chefs cozinhando em praça pública até os célebres festins –jantares de alta gastronomia com menu harmonizado. E, mesmo quando tudo acaba, a cidade segue como um paraíso para foodies. Paradas obrigatórias são lugares como o Tragaluz ou o Angatu.
Mas a ótima notícia é que praticamente o ano inteiro é possível participar de um festival de gastronomia em Minas Gerais. "Nos últimos três meses, tivemos 80 festivais de cozinha mineira, de gastronomia. Neste ano, vamos chegar a 300. Praticamente toda cidade tem o seu", conta Leônidas.
Exemplos de festas gastronômicas pitorescas e únicas não faltam. Na Festa do Queijo, em Ipanema, é produzido o maior queijo do mundo, que a cada ano quebra o próprio recorde, devidamente registrado pelo Guinness Book. Este ano pesou nada menos que 2.727 quilos. No Cozinha de Roça, em Itapecerica, que teve sua 15a edição em junho, fornos a lenha são montados a céu aberto, ocupando as históricas ruas da cidade. Já em Igarapé, há 20 anos, cozinheiros batizados de "Mestras" e "Mestres" armam barracas na frente das casas para servir quitutes feitos com ingredientes que eles plantam em seus quintais. "São pratos totalmente diferentes, cozinha contemporânea que eles vão lapidando e inventando a cada ano", diz Leônidas.
Essa profusão de festivais gastronômicos é o resultado de uma política de estado que enxerga na cozinha mineira um importante mecanismo de transformação social. "Cozinha é política de estado em Minas", diz o secretário. Ao incentivar festivais, incentiva-se também o consumo de produtos da agricultura familiar, do turismo de base comunitária, movimentando-se toda a cadeia. Além disso, há políticas de incentivo a qualquer área da cozinha mineira clássica e contemporânea.
O segredo está nos ingredientes
Não se faz boa cozinha sem bons ingredientes e nesse ponto Minas Gerais está cada vez mais bem guarnecida. Todas as matérias primas estão entre as melhores, mas algo que merece destaque é o Queijo Minas Artesanal que, por ter o leite cru como ingrediente principal, somente há dez anos pôde ter sua venda para fora do estado regulamentada. A partir daí, o produtor ganhou mais dinheiro e pôde investir para melhorar o produto.
Esse reconhecimento está prestes a ser internacional. O método de produção do Queijo Minas Artesanal caminha para ser reconhecido pela Unesco como Patrimônio Imaterial Cultural da Humanidade, sendo o primeiro alimento brasileiro a ocupar esse posto. Segundo o secretário Leônidas Oliveira, a candidatura já foi aceita. Vale mencionar que os ingredientes base da cozinha mineira, o milho e a mandioca, foram recentemente protegidos como Patrimônio Cultural do Estado de Minas Gerais pelo IEPHA (Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais).
Nas Minas Gerais de hoje, as cozinhas clássica e contemporânea existem por todas as cidades e convivem. "Até porque a cozinha clássica é a que o mineiro faz todo dia em casa, o que vem depois é próprio da criatividade humana que está sempre evoluindo, mas não há uma em detrimento da outra", diz Leônidas. Ainda segundo ele, a cozinha mineira contemporânea está servindo muito para fazer o marketing da cozinha clássica.
Caio Soter compara o movimento que acontece em Minas hoje ao que aconteceu no Peru na década passada. "Acho que a nouvelle cuisine francesa e a nórdica foram muito disruptivas do ponto de vista técnico. Aqui, a gente não está inventando nada tecnicamente, mas sim valorizando nossos produtos, nossa tradição e cultura. Foi o que o Peru fez", diz. "Eles pegaram a tradição e encaixaram num modelo de restaurante tendência no mundo que é ter menu degustação, pratos mais bem apresentados, mais leves. Eles se uniram para trazer os holofotes da gastronomia mundial para o Peru. A gente se assemelha. Estamos pegando nossa cozinha tradicional e colocando uma roupa de 2023 nela. Não queremos reinventar a roda, mas sim mostrar ao mundo o quanto é incrível o que temos aqui."
5 viagens gastronômicas em Minas
O chef Caio Soter, do Pacato, viaja o estado atrás de ingredientes e cultura para inspirar seus menus. Conheça seus destinos preferidos:
1- Belo Horizonte
"É um baita destino turístico, pois tem a estrutura da capital e a uma hora daqui há milhares de produtores, cidades históricas. Ou seja, é um ótimo ponto de partida."
2- Tiradentes
"A cidade histórica está na região do Campo das Vertentes que eu chamo de ‘a Toscana mineira’, pois o relevo lembra muito a região da Itália. Além de reunir natureza, cachoeira, pousadas de charme, Tiradentes tem uma estrutura de restaurantes melhor que a de várias capitais do Brasil. E com a grande vantagem de estar à mesma distância de BH, São Paulo e Rio de Janeiro."
3- Serra da Mantiqueira
"Lá você encontra vinho, queijo, azeite e é uma região mais desenvolvida, então são cidades mais estruturadas, com hotéis legais. Um super destino turístico."
4- Vale do Jequitinhonha
"Acho que tem que ser explorado por pessoas que tenham um senso mais aventureiro, pois tem menos estrutura, mas é riquíssimo culturalmente, muito famoso pelas bordadeiras, pelo artesanato em barro que está espalhado por galerias do mundo inteiro, além de ser um lugar lindo. Uma viagem começando em Diamantina e acabando em Almenara é muito legal. Para mim, é ali que mora o verdadeiro mineiro. Ali o tempo corre diferente. "
5- Serra da Canastra
"Além do queijo, é uma região maravilhosa, com muitas cachoeiras, muitas belezas naturais. Lá você já encontra um turismo de fazenda, focado em produtores mais estruturados, é legal visitar as queijarias, eles sabem contar história."
Fotos: Victor Schawner
*Conteúdo patrocinado originalmente publicado no Estúdio Folha